Nas primeiras linhas dos cursos de Introdução ao Direito, existe uma explicação básica que é muito útil para compreendermos o mundo ao nosso redor. Nada complicado, mas apenas a constatação de que quando nascemos somos inseridos em um contexto preexistente, com cultura, crenças e regras as quais nos submetemos para então nos adequarmos. Isto nos molda, e de certa forma nos prepara tanto para nos encaixarmos na sociedade quanto para poder compreender quais são as nossas vicissitudes, mas também nos faz enxergar os males e a corrupção progressiva que assolam a sociedade a qual pertencemos. Em ambos os casos, precisamos aprender a nos corrigir e nos fortalecer, para assim podermos fazer a nossa parte na modelagem ou correção do nosso meio. E quando eu falo “meio”, me refiro aos diversos níveis de interação que temos em família, no trabalho, e na participação da nossa organização social e política. Sim, somos todos responsáveis pela construção e mantença de nossa organização social e política, assim como também somos individualmente responsáveis por lutar para a correção de qualquer desvio, pois toda organização humana é falível e necessita ser mantida e corrigida no seu devido tempo.
É fato que as nossas crenças fundamentais, aquelas que nos são incutidas na mais tenra infância, se estabelecem como fundamento de nosso próprio ser.
Assim, alguém que nasceu em um ambiente seguro, estável e onde impera o respeito mútuo não aceita violações aos direitos pessoais, enquanto outra pessoa a quem não foi passado nenhum valor raramente desenvolverá noções sólidas de ética e civilidade, ao contrário, geralmente a pessoa nascida sem a estrutura de uma família provedora e sólida desenvolve um individualismo exacerbado, muitas vezes com a noção de que todos lhe devem algo, e de que ele não tem obrigações para com o mundo.
A pessoa que sabe defender seus direitos pessoais e reconhece os direitos individuais de seu próximo, jamais exigirá que alguém lhe dê algo que não tenha feito por merecer, ao passo de que a pessoa que se permitiu errar tão profundamente a ponto de achar que outra pessoa (ou a sociedade) tem algum débito para com ela, esta será a pessoa que não achará errado praticar crimes, quaisquer que sejam os crimes. Porque a própria natureza do crime é praticar um ato em benefício próprio violando o direito de outra(s) pessoa(s), sendo este ato tão gravoso que a própria sociedade define uma pena.
Ninguém rouba sem antes achar que ele merece mais aquela coisa do que o atual proprietário. E o roubo é o maior e principal dos crimes, pois é aquele onde a pessoa decidiu que o mundo lhe deve, que o mundo é obrigado a prover as suas necessidades, que a sociedade é culpada pela sua situação existencial. Quando a ideia da legitimação do roubo é institucionalizada pelos sociólogos, existe o reforço negativo que faz com que alguns decidam praticar crimes, ao passo em que muitos ao seu redor, mesmo sem praticar crimes pessoalmente, suportam e apoiam o criminoso. Isto ocorre dentro de pequenos núcleos de relação pessoal, ou, quando existe a perda de território nacional para o crime organizado como acontece em algumas favelas, recentemente apelidadas de “comunidades”, percebe-se que nasce um sistema social intrincado baseado em uma nova moralidade, que tem como fundamento o comportamento criminoso.
Em determinado momento eu passei a discordar fundamentalmente da evolução ocorrida no Direito, de afastamento das penas corporais. Sim, quando alguém comete um crime de roubo ela realmente acredita que a sociedade lhe deve algo, então neste ponto eu não concordo que a pena para este crime seja justamente abrigar, cuidar e alimentar o ladrão – porque é isto que ocorre na pena de prisão.
Eu sou o camarada que na juventude leu três vezes Papillon, de Henri Charrière, e só décadas depois me surpreendi quando vi alguém mencionando que o livro se tratava de uma crítica ao sistema prisional francês da época. Sempre achei e continuo acreditando que ladrão precisa sim se ferrar, e que pena deve ser algo tão grave a ponto de o ladrão temer desesperadamente sua condenação. Algo semelhante aconteceu quando lançaram o filme Tropa de Elite – era para ser uma crítica à polícia, e o povo recebeu como um retrato DO QUE DEVE SER A POLÍCIA.
No Brasil já se chegou há tempos na descriminação de fato do furto simples, pois, como a pena é inferior àquela prevista na lei para que haja encarceramento, na prática não existe mais este crime. Já foi assim com o crime de adultério, que em determinado momento acabou sendo retirado do códex penal, e está sendo assim com o furto simples. E está se caminhando neste sentido para diversos atos que hoje ainda são considerados crime, como por exemplo, era crime até muito pouco tempo atrás roubar dinheiro público.
Os efeitos da política penal, somada à deficiência da estrutura básica das famílias, que tem se deteriorado assustadoramente em um curto espaço de tempo, torna o crime uma opção racional e razoável, faz com que um número cada vez maior de indivíduos renuncie ao seu papel de provedor e o coloque oficialmente como um parasita social. Porque todo criminoso não é nada senão um parasita, alguém que consome sem nada produzir. Quando o número de pessoas com esta conformação mental cresce, eles ganham volume proporcional e até conseguem eleger seus próprios candidatos – que nos seus moldes, são ladrões.
Esta alteração no comportamento e no número de pessoas que decidem viver do crime pode ser observado de forma imediata na arquitetura, especialmente nos bairros simples de uma cidade como São Paulo. Eu nasci e fui criado em Pirituba, bairro da periferia da cidade, numa época em que a palavra periferia não tinha o significado de hoje. O bairro nasceu às margens da Estação Ferroviária de Pirituba, era local de moradia de imigrantes portugueses e italianos que trabalhavam nas fábricas da capital e na própria ferrovia. As casas tinham muretas para a rua, um muro mais alto separando um imóvel do outro, e não existiam garagens até quase meados da década de 70. As pessoas não tinham carros, usavam os ônibus e trens como forma de transporte decente que eram, e salvo alguns raros ladrões de galinha, praticamente não existia criminalidade. Qualquer ladrão teria que vir de outro bairro, as pessoas tinham armas em casa e bandido tinha medo da polícia.
Hoje circulando no mesmo bairro, vemos casas fortificadas, com portões sólidos, garagens fechadas, concertinas de arame farpado e câmeras de vigilância com monitoramento remoto. Um carro deixado na rua por mais do que poucos minutos terá seu vidro quebrado e as coisas do interior serão furtadas. Se um ladrão pular o muro e se ferir na concertina, o dono do imóvel será processado e provavelmente condenado, pois a lei criminaliza o uso de defendículas – e a definição de defendículas vai se alterando até o ponto em que qualquer meio de resistência ao invasor se torna crime. No mesmo momento observamos acórdãos afirmando que o ato de alguém invadir uma casa com armas em punho é mero ato preparatório para o roubo, ou seja, é impunível… Se o dono da casa for encontrado com uma arma, não tenha dúvidas, ele será condenado criminalmente.
As pessoas foram mudando, as leis também. O mesmo local onde desfrutamos uma infância feliz e sem medo, se tornou local da prática diária de crimes. E isto provoca uma alteração no comportamento de todas as pessoas, inclusive nas que não são criminosas. A mais importante delas, é a conformação com a “realidade” do crime. Esta conformação tem vários estágios, e o mais avançado é quando a pessoa passa a acreditar que é imoral defender seus bens e até mesmo a sua própria vida. Este é o estágio mais baixo da humanidade, quando observamos que uma cachorra defende seus filhotes, mas um ser humano acredita que é imoral defender a sua prole.
Então, para que a sociedade tenha se alterado ao ponto de ser crime não ser criminoso, foi necessária uma transformação não apenas do lado das pessoas predispostas à prática de crimes, mas principalmente do restante da sociedade, no que se inclui não apenas os cidadãos comuns, mas os legisladores, promotores públicos e julgadores.
O mais incrível é que tudo isso ocorre dentro de uma mudança progressiva de paradigmas, onde as pessoas tudo observam e nada fazem, apenas aceitam.
Eu nasci em 1964, no que era chamado de “Ditadura Militar”. Pois bem, eu digo que para quem estudava e trabalhava, a referida “ditadura” era invisível, não era observável no dia a dia de um cidadão comum. A gente tinha toda a liberdade para ir e vir, era uma época em que a gente festejava o natal e o ano novo de portas e portões abertos, levas de vizinhos que nunca tínhamos visto em nossas vidas entravam e saíam de nossas casas, e nós mesmos saíamos para as ruas e fazíamos exatamente isso – a gente entrava na casa de pessoas que nunca tínhamos visto, comia alguma guloseima, cumprimentava todo mundo e continuava. Lembro-me de viajar com o meu pai para caçadas, um monte de armas no carro, existia sim fiscalização policial – meu pai apresentava o documento das armas, mostrava a munição e a viagem continuava. Comprei minha primeira arma com 18 anos de idade e tirei meu primeiro porte com 21 anos.
Fiquei no Brasil até o ponto em que as armas adquiridas legalmente passaram a ser objeto da fúria do governo, a gente precisava morar dentro de fortalezas e dirigir dentro de carros blindados, sempre com medo. MEDO.
Aí eu me mudei para os EUA, num estado onde quem roubar um pirulito vai preso, e quem praticar um crime com o uso de armas de fogo não tem possibilidade de retornar para a sociedade em menos de 10 anos. Um Estado onde tem pena de morte e, pelo menos, meia dúzia por ano vão pro saco.
De repente eu vi que moro hoje num lugar como era o lugar da minha infância, onde a gente não tem medo. Um lugar onde eu tenho o direito de portar minha arma, mas eu porto mais porque amo armas de fogo, não pelo medo. Um lugar onde descobri que, mesmo não tendo nascido aqui, sou respeitado como um ser humano, com direito a viver e defender a minha vida e da minha família.
Um lugar onde a vida dos meus filhos é mais respeitada do que a vida de um cachorro.
Hoje eu vi um pequeno vídeo do ditador de republiqueta chamado Alexandre de Moraes, dizendo que os cidadãos que amam e prezam a sua liberdade, estariam na verdade violando a democracia.
Alexandre de Moraes é uma das pessoas que rompeu a democracia e trabalha diuturnamente para impedir que o Brasil possa voltar a ser uma democracia. Ele é pessoalmente um dos responsáveis por destruir a ordem constitucional, a tripartição de poderes e o próprio Estado Democrático de Direito.
Ele é o exemplo de pessoa que, sendo profunda conhecedora do Direito, mesmo assim se tornou um dos responsáveis por transformar o Brasil numa nação onde o cidadão tem medo dos bandidos e do Estado, e onde os bandidos são o Estado.
É inaceitável que alguém como Alexandre de Moraes profira a palavra “democracia”. Chega a ser ofensivo.
Porque democracia é o governo do povo, para o povo e pelo povo. Democracia é o cidadão comum dizendo que não aceita um ladrão na presidência, e nem um ditador no STF. Numa democracia o cidadão pode dizer isto, enquanto na ditadura de Alexandre de Moraes até mesmo uma pessoa que tenha o direito inviolável constitucional de falar e dar opiniões é preso.
Então é isto que o Brasil vive, uma “democracia” dos criminosos.